Hoje irei postar um texto de meu orientador do Mestrado, Dante Lucchesi. Discorre sobre uma expressão genuína da língua, que jamais deveria ser desmerecida pelos “gramatiqueiros” de plantão, seres obtusos e pequenos que querem empobrecer nosso idioma...
Boa leitura!
Correndo risco de vida
Em uma de suas histórias geniais, Monteiro Lobato nos apresenta o reformador da natureza, Américo Pisca-Pisca. Questionando o perfeito equilíbrio do mundo natural, Américo Pisca-Pisca apontava um desequilíbrio flagrante no fato de uma enorme árvore, como a jabuticabeira, sustentar frutos tão pequeninos, enquanto a colossal abóbora é sustentada pelo caule fino de uma planta rasteira. Satisfeito com sua grande descoberta, Américo deita-se sob a sombra de uma das jabuticabeiras e adormece. Lá pelas tantas, uma frutinha cai bem na ponta do seu nariz. Aturdido, o reformador se dá conta de sua vã lógica.
Se os reformadores da natureza, como Américo Pisca-Pisca, já caíram no ridículo, os reformadores da língua ainda gozam de muito prestígio. Durante muito tempo, era possível usar a expressão “fulano não corre mais risco de vida”. Qualquer falante normal decodificava a expressão risco de vida como “ter a vida em risco”. E tudo ia muito bem, até que um desses reformadores da língua sentenciou, do alto da sua vã inteligência: “não é risco de vida, é risco de morte!”. Quer dizer que só ele teve essa brilhante percepção, todos os outros falantes da língua não passavam de obtusos irrecuperáveis. É o tipo de sujeito que acredita ter inventado a roda. E impressiona a fortuna crítica de tal asneira. Desde então, todos os jornais propalam “o grande líder sicrano ainda corre risco de morte”. E me desculpem, mas risco de morte é muito pernóstico.
Assim como o reformador da natureza não entende nada da dinâmica do mundo natural, esses gramáticos que pretendem reformar o uso lingüístico invocando sua pretensa racionalidade não percebem coisa alguma da lógica de funcionamento da língua. Como bem ensinou Saussure, fundador da Lingüística Moderna, tudo na língua é convenção. A expressão risco de vida, com sentido de “risco de perder a vida”, estava consagrada pelo uso e não criava problema na comunicação, porque nenhum falante, ao ouvir tal expressão, pensava que o sujeito corria risco de viver.
A relação entre as formas lingüísticas e o seu conteúdo é arbitrária e convencionada socialmente. Em japonês, por exemplo, o objeto precede o verbo. Diz-se "João o bolo comeu" ao invés de "João comeu o bolo", como em português. Se o nosso reformador da língua baixasse por lá, tentaria convencer os japoneses de que o verbo preceder o seu objeto é muito mais lógico!
Mas os ingênuos poderiam argumentar: o nosso oráculo gramatical não melhorou a língua tornando-a mais lógica? Não, meus caros, ele a empobreceu. Pois, ao lado da expressão mais trivial correr o risco de cair do cavalo, a língua tem uma expressão mais sofisticada: correr risco de vida. Tal construção dissonante amplia as possibilidades expressivas da língua, criando um veio que pode vir a ser explorado por poetas e demais criadores da língua. “Corrigir” risco de vida por risco de morte é substituir uma expressão mais sutil e sofisticada por sua versão mais imediata, trivial e óbvia. E um recurso expressivo passou a correr risco de vida pela ação nefanda dos fariseus no templo democrático da língua.
LUCCHESI, Dante. Correndo risco de vida. A Tarde, Salvador, 17 set. 2006. Opinião, p. 3.
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