quarta-feira, 17 de junho de 2009

Correndo risco de Vida ou de Morte?

Caros amigos!

Hoje irei postar um texto de meu orientador do Mestrado, Dante Lucchesi. Discorre sobre uma expressão genuína da língua, que jamais deveria ser desmerecida pelos “gramatiqueiros” de plantão, seres obtusos e pequenos que querem empobrecer nosso idioma...
Boa leitura!




Correndo risco de vida

Em uma de suas histórias geniais, Monteiro Lobato nos apresenta o reformador da natureza, Américo Pisca-Pisca. Questionando o perfeito equilíbrio do mundo natural, Américo Pisca-Pisca apontava um desequilíbrio flagrante no fato de uma enorme árvore, como a jabuticabeira, sustentar frutos tão pequeninos, enquanto a colossal abóbora é sustentada pelo caule fino de uma planta rasteira. Satisfeito com sua grande descoberta, Américo deita-se sob a sombra de uma das jabuticabeiras e adormece. Lá pelas tantas, uma frutinha cai bem na ponta do seu nariz. Aturdido, o reformador se dá conta de sua vã lógica.

Se os reformadores da natureza, como Américo Pisca-Pisca, já caíram no ridículo, os reformadores da língua ainda gozam de muito prestígio. Durante muito tempo, era possível usar a expressão “fulano não corre mais risco de vida”. Qualquer falante normal decodificava a expressão risco de vida como “ter a vida em risco”. E tudo ia muito bem, até que um desses reformadores da língua sentenciou, do alto da sua vã inteligência: “não é risco de vida, é risco de morte!”. Quer dizer que só ele teve essa brilhante percepção, todos os outros falantes da língua não passavam de obtusos irrecuperáveis. É o tipo de sujeito que acredita ter inventado a roda. E impressiona a fortuna crítica de tal asneira. Desde então, todos os jornais propalam “o grande líder sicrano ainda corre risco de morte”. E me desculpem, mas risco de morte é muito pernóstico.

Assim como o reformador da natureza não entende nada da dinâmica do mundo natural, esses gramáticos que pretendem reformar o uso lingüístico invocando sua pretensa racionalidade não percebem coisa alguma da lógica de funcionamento da língua. Como bem ensinou Saussure, fundador da Lingüística Moderna, tudo na língua é convenção. A expressão risco de vida, com sentido de “risco de perder a vida”, estava consagrada pelo uso e não criava problema na comunicação, porque nenhum falante, ao ouvir tal expressão, pensava que o sujeito corria risco de viver.

A relação entre as formas lingüísticas e o seu conteúdo é arbitrária e convencionada socialmente. Em japonês, por exemplo, o objeto precede o verbo. Diz-se "João o bolo comeu" ao invés de "João comeu o bolo", como em português. Se o nosso reformador da língua baixasse por lá, tentaria convencer os japoneses de que o verbo preceder o seu objeto é muito mais lógico!

Mas os ingênuos poderiam argumentar: o nosso oráculo gramatical não melhorou a língua tornando-a mais lógica? Não, meus caros, ele a empobreceu. Pois, ao lado da expressão mais trivial correr o risco de cair do cavalo, a língua tem uma expressão mais sofisticada: correr risco de vida. Tal construção dissonante amplia as possibilidades expressivas da língua, criando um veio que pode vir a ser explorado por poetas e demais criadores da língua. “Corrigir” risco de vida por risco de morte é substituir uma expressão mais sutil e sofisticada por sua versão mais imediata, trivial e óbvia. E um recurso expressivo passou a correr risco de vida pela ação nefanda dos fariseus no templo democrático da língua.


LUCCHESI, Dante. Correndo risco de vida. A Tarde, Salvador, 17 set. 2006. Opinião, p. 3.

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